Vez em quando, um livro retorna à Locadora e percebo que ele
esteve fora por muito tempo. E quem me conhece sabe como eu sinto saudade de
livro daí, quando percebo lá estou eu, relendo trechos, lembrando da história.
Algumas vezes o levo para casa e começo de verdade a relê-lo, mas atualmente
isto não é muito fácil, afinal, à minha direita há sempre pelo menos mais uns
20 novinhos em folha precisando, urgentemente, da minha atenção e aí vem a
culpa, releio o livro rapidamente, ou fico apenas com alguns trechos dos quais
gostei mais. Hoje, depois de muito tempo, uns meses, penso, eis que retornou “A Descoberta do Mundo” de Clarice
Lispector.
Fiz o que fazemos sempre, passei álcool na capa para
guardá-lo, mas não resisti, e lá fui eu: li uma crônica, outra, e já estava
quase querendo carregá-lo comigo quando encontrei uma bem pequenininha... linda
demais, e resolvi então colocá-la aqui para que você, alguém a leia comigo.
ENIGMA
Ela estava vestida de uniforme listrado de empregada, mas falava como
dona-de-casa. Viu-me subir as escadas cheia de embrulhos e parando para sentar
nos degraus – os dois elevadores estavam enguiçados. Ela morava no quinto
andar, eu no sétimo. Subiu comigo segurando alguns dos meus embrulhos numa das
mãos, e na outra o leite que comprara. Quando chegou ao quinto andar, botou o
leite em casa dela entrando pela porta de serviço, depois fez questão de
segurar meus embrulhos e de subir comigo até o sétimo.
Que mistério era esse: falava como
dona-de-casa, seu rosto era o de dona-de-casa, e no entanto estava
uniformizada. Sabia do incêndio que eu sofrera, imaginava a dor que eu sentira,
e disse: mais vale a pena sentir dor do que não sentir nada.
- tem pessoas – acrescentou – que nunca ficam nem deprimidas,
e não sabem o que perdem.
Explicou-me,
logo a mim, que a depressão ensina muito.
E - juro – acrescentou o seguinte: “A vida tem que ter um
aguilhão, senão a pessoa não vive.” E ela usou a palavra aguilhão, de que eu gosto.
é sempre descobrimos, ou sempre passa alguem nas nossas vidas para nos ensinar algo.
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